2024-10-27-A-Sinfonia-do-Controle
A Maldição da Linguagem
O desejo se desorientou, pois desejamos os desejos desejados.
A linguagem, essa ferramenta poderosa que nos permite comunicar e dar sentido ao mundo, carrega em si uma maldição silenciosa. Ela não apenas expressa nossos pensamentos e sentimentos, mas também molda nossos desejos e identidades. Vivemos em uma era em que o desejo se tornou desorientado; já não sabemos mais o que realmente queremos. Desejamos os desejos dos outros, nos tornamos reféns das expectativas alheias e perdemos a conexão com nossa própria essência.
Essa confusão de desejos remete ao Mito de Sísifo, condenado pelos deuses a empurrar eternamente uma pedra montanha acima, apenas para vê-la rolar de volta ao ponto de partida. Nossa busca incessante por satisfazer desejos que não são genuinamente nossos se assemelha a esse esforço inútil. Corremos atrás de objetivos impostos pela sociedade, pela família ou pela cultura, e, mesmo quando alcançamos esses objetivos, sentimos um vazio, uma insatisfação que nos empurra de volta ao início da jornada.
Os efeitos que uma infância com violência causa a uma pessoa são profundos e duradouros. A violência não é apenas física; pode ser emocional, psicológica e, sobretudo, linguística. As palavras ditas na infância moldam a percepção que a pessoa tem de si mesma e do mundo. Uma criança que cresce em um ambiente violento internaliza mensagens de desvalor, medo e insegurança. Essa violência se traduz em dificuldades para estabelecer desejos próprios, pois a voz interna está carregada de críticas e expectativas que não lhe pertencem.
Nesse contexto, a relação de subjetividade entre pai e filho ganha destaque. Muitas vezes, os pais projetam em seus filhos os desejos não realizados, as frustrações e as expectativas que carregam. O filho, por sua vez, luta para encontrar sua própria identidade sob o peso dessas projeções. Essa dinâmica pode levar a um ciclo intergeracional de repetição de padrões, onde os mesmos erros e sofrimentos são perpetuados.
A sensação de ser a reencarnação do avô, especialmente quando este teve uma vida marcada por desafios como o alcoolismo e uma morte precoce por meningite, reflete a profundidade com que carregamos as histórias de nossos ancestrais. As neuroses e traumas não resolvidos podem ser transmitidos de geração em geração, influenciando comportamentos e escolhas de maneira inconsciente. A luta do avô com o alcoolismo pode se manifestar como uma batalha interna no neto, que sente o peso desse legado mesmo sem ter vivido aquelas experiências diretamente.
Essa narrativa nos remete ao mito de Zeus e Cronos, onde o filho está destinado a destronar o pai. Cronos, temendo ser destronado por seus filhos assim como fez com seu próprio pai, Urano, engolia cada um deles ao nascer. Zeus, porém, escapou desse destino e eventualmente cumpriu a profecia. Esse mito simboliza o ciclo eterno de conflito entre gerações, a luta pelo poder e a dificuldade em romper com padrões estabelecidos.
Somos reféns dos desejos dos outros. Desde cedo, somos ensinados a buscar o que é valorizado pela família, pela sociedade e pela cultura em que estamos inseridos. Essas influências moldam nossos objetivos e podem nos afastar de nossa verdadeira natureza. Quando realizamos o desejo alheio, podemos sentir uma satisfação momentânea, mas a longo prazo, isso pode levar a um sentimento de vazio e falta de propósito.
O psicólogo Ivan Capellato, em suas reflexões sobre o desejo, destaca que o ser humano é um ser de carências, sempre em busca de algo para preencher uma sensação de falta. Transformamos instintos em desejos através da linguagem e da cultura, mas esse processo pode nos desconectar de nossas necessidades autênticas. Capellato ressalta que o desejo não está necessariamente ligado ao prazer; muitas vezes, perseguimos objetos de desejo que nos fazem mal, simplesmente porque fomos condicionados a valorizá-los.
A sociedade contemporânea exacerba essa confusão de desejos, bombardeando-nos com imagens e mensagens sobre o que deveríamos querer. A mídia, a publicidade e as redes sociais criam modelos ideais que buscamos imitar, na esperança de encontrar satisfação. No entanto, essa busca nos afasta ainda mais de nós mesmos, reforçando a maldição da linguagem que nos impede de expressar e entender nossos verdadeiros anseios.
Para amenizar essa subjetividade conturbada, é essencial retomar o contato com nosso eu interior. Isso implica questionar os desejos que temos: eles realmente nos pertencem ou são reflexos do que os outros esperam de nós? Esse processo não é fácil, especialmente quando carregamos traumas e padrões familiares profundos. No entanto, é um passo crucial para quebrar ciclos intergeracionais de sofrimento e construir uma identidade autêntica.
Reconhecer a influência da violência na infância, compreender a dinâmica familiar e os mitos que permeiam nossas vidas nos permite despertar para a necessidade de buscar nossos próprios caminhos. Libertar-se dos desejos alheios é um ato de coragem e autoconhecimento. Ao fazê-lo, podemos transformar a maldição da linguagem em uma bênção, utilizando-a para expressar verdadeiramente quem somos e o que desejamos.
Conclusão
A maldição da linguagem reside na sua capacidade de nos desconectar de nós mesmos, ao mesmo tempo em que nos conecta com os outros de maneiras complexas e, às vezes, dolorosas. Desejar os desejos dos outros é perder-se em um labirinto sem saída, semelhante ao eterno empurrar da pedra por Sísifo. Para quebrar essa maldição, é necessário um esforço consciente de autodescoberta e desconstrução das influências externas que moldam nossos desejos.
Assim como Zeus rompeu o ciclo de destruição familiar, podemos romper com os padrões que nos aprisionam. Isso exige enfrentarmos os traumas do passado, compreender as dinâmicas que nos moldaram e, principalmente, ouvir a nossa própria voz. Somente então poderemos direcionar nosso desejo para aquilo que verdadeiramente nos completa, encontrando sentido e realização em nossas escolhas.
Ao realizar o desejo que é genuinamente nosso, quebramos as correntes que nos prendem aos desejos alheios. Transformamos a maldição em liberdade, a linguagem em expressão autêntica, e o desejo em uma força criativa que impulsiona nosso crescimento e felicidade.
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O desejo e sua formação Ivan Capellato - https://youtu.be/KYkEyQzfvgU?si=ZHk_D8o79Qyugag9 - Marcelo D2 - A Maldição do Samba (Video Clip) - https://youtu.be/oFyHTp3z2Rk?si=182hLmUNSQAckqNq
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